sábado

Desaparecer.

A primeira vez que desapareci foi aos oito meses de gestação. A minha mãe nunca teve uma barriga de gravidez imponente, mas num dia em que dava aulas - em que tentava perceber e explicar a psique humana - sentiu um aperto no ventre. Ao olhar para baixo viu a sua barriga lisa, como se nunca tivera lá estado consequência alguma. Assustou-se. Terminou de dar a aula. “A menina desapareceu!”, exclamou em chamada à minha madrinha, que se riu. “As meninas não desaparecem assim!”. Encontraram-se. “A menina desapareceu.”. Após várias voltas dadas a diferentes números no marcador do velho telefone, a chamada para o hospital fez-se. “As meninas não desaparecem assim!”. Mas que passassem por lá. Lá passaram. “A menina desapareceu.”. Era necessário que fossem feitos exames. Exames foram feitos. De facto as meninas não desaparecem assim: num aperto, sem sangue, sem rastos (apenas quando são mais velhas e não são deixadas pistas que se possam farejar, detectar, alumiar). 
A menina quis desaparecer, mas não conseguiu, só conseguiu esconder-se. Quis muito. Quis mesmo. Considero sobre mim que com cada passo do tempo fico menos sábia. Aos oito meses de gestação atingi o pico da iluminação, a partir de então, reduziu-se e a luz foi-se. Soube (e teorizo, confrontada com a humanidade como uma multidão) que idealmente não se confia em ninguém. Mas confio em toda a gente. O meu bem-estar está sempre entregue à acção de todos os que me ladeiam. A minha alegria sempre refém de alguém. Quanto mais me batem, menos gosto de mim. Sou fraca. Congelei e congelo. Nunca deixei qualquer tipo de testemunho que valesse algo a alguém, que protegesse a próxima. Nunca aprendi a resguardar a gentileza. A minha alegria é sempre refém de alguém. Aos oito meses de gestação conhecia-me mal, mas bem o mundo. Sabia que não poderia nunca saber mais do que sabia naquele momento. Estava completa, iluminada, acompanhada por água que não me exigia a tona para um respiro - dobrada sobre mim via a integridade da minha figura. Hoje conheço-me e só consigo teorizar os outros. Estou só de quem me veja e de quem me compreenda. Afogo-me em ar. 

Hoje foi um dia mau, que se foi tornando pior. Lembrou-me de como sempre quis desaparecer.

quarta-feira

Febre.

É perceptível o sangue nos meus lábios e nas minhas bochechas e nos meus lábios.

terça-feira

Intuito

Odeio, detesto, abomino.


Grrrr.

quinta-feira

quarta-feira

Homem de Papel

O homem de papel é frágil e débil.
para não ficar embaraçado tenta chorar os que estão à volta.
Deitado recosta-se na sua melancolia
e morde o lábio se discordam do que dita o seu cigarro.
vive no mundo de sonho do seu sofá
imaginando-se o derradeiro lider
tiranizando a liberdade e a diferença.
reproduz-se desesperado produzindo no trabalho.
é o melhor naquilo em que se aplica
só é pouco prendado de aceitação e humildade.
nao se acha humano este homem!
assume silhueta de messias lutador e mal-tratado
agindo nas costas vis do sistema que o quer ver morto.

o homem de papel luta,
mas luta em vão
pois batalha inimigos que não existem.

o homem de papel é meu irmão e eu sou a sua imagem.

Irene Paços

sábado

Jardim

Mãe não peques mais, que o mundo dói quando há muita gente.
E porque desaparecem uns, fica a gente que fica desejando não estar.
Desejando não ser.
Pudera eu ser deus,
meu deus,
e escolher quem devia nascer.
e escolher quem se devia perder.
e escolher.
Escolheria talvez que não houvesse mais
o que há aqui neste agora.
E retornava a haver o que não há mais.
Dotaria o mundo de mais espaço vazio,
mas aquele vazio espaço que me chora nas entranhas,
voltaria a estar completo.
Com tudo no seu sítio de antes,
ainda que antes não implicasse tudo no sítio.
A desordenação e loucura que eram suas.
As orquídeas com as tulipas,
os lírios com as framboesas.
Pudera eu ser deus,
meu deus,
e escolher quem devia morrer.
e escolher quem não se devia perder.
e escolher-te a ti.

Ana Guimarães

"La femme au canapé"

Kees van Dongen